Crônicas do Cotidiano

A morte do médico ateu.

João Carlos Lopes dos Santos.



Com idade bem avançada, ainda trabalhava... Teve trajetória de vida familiar, social e profissional irretocável. Morreu de morte tranquila, ao lado daqueles que amava. A morte que todos pedimos a Deus.

Deus estaria aí, para isso?

Conversando com os amigos, ao mesmo tempo em que negava, quase se confessava ateu. Muitos apostavam nessa possibilidade. Dizia que não tinha certeza da existência de Deus, mas também que não poderia negá-la. Contudo, dizia, se Deus realmente existisse seria um Cara muito ocupado, que não iria imiscuir-se em coisas terrenas, como cirurgias, outros fatos do cotidiano e nem, tampouco, como se responsabilizar pelo enorme passivo causado por todos ‘Deus lhe pague’, que ouvimos a toda hora... Deus, por exemplo, não iria interferir no resultado de um jogo de futebol, sendo-lhe, então, impossível evitar, com as nossas preces, que façam - ou evitem - um gol no finalzinho do jogo. Deus, insistia, sejamos racionais, não estaria aí para essas coisas...

Andava muito esquecido...

Era um cirurgião que não tinha medo do ofício e muito chegado a insights certeiros, como detectar doenças, de pronto, só de olhar os pacientes. Quando necessário, pegava pesado para colocar o paciente num ritmo de vida saudável. Era respeitadíssimo por todos e, mormente, pela comunidade médica. Quando elogiado, impassível, invertia a lógica, alegando que o paciente é que tinha boa cicatrização ou que se tratava de um ato procedimental muito simples. Alegava, ainda minimizando seus méritos, que o passar dos anos e a longa experiência em prontos-socorros o tinha ajudado bastante. No entanto, andando pela cidade, quase sempre, passava batido pelas pessoas que tinha salvado da boca da morte, sem as cumprimentar, simplesmente porque não as reconhecia. Desde muito novo, quando cobrado a respeito, se desculpava, sinceramente, dizendo que andava muito esquecido, o que já o preocupava. Muito responsável, dizia que, quando esquecesse o nome da mulher que constava na sua certidão de casamento, pararia de trabalhar. Reticencioso, em tom baixo, brincava com a hipótese: quem sabe é o “alemão”... Fazendo uma menção velada  do mal de Alzheimer.

A subida ao céu.

E nosso médico acordou muito rejuvenescido num belíssimo jardim temático, representando um grande tabuleiro de xadrez entre arbustos, figurando reis, damas, bispos, torres, cavalos e peões. No entorno, alamedas ladeadas por frondosas árvores, dispostas em renque, o convidavam para as caminhadas matinais. Sentiu-se bem à vontade e já fazia planos.

Alguém se apresentou com o nome de Pedro.

_ Seja bem-vindo! Na sua ficha há uma anotação de próprio punho, para que o leve à presença de Deus.

_ Pedro, até hoje não consegui argumentos absolutamente convincentes para entender a existência de Deus.

_ Bem, se é assim, me aguarde que voltarei logo.

Pedro na sala celestial.

_ Senhor, chegou o...

_ Já sei, Pedro, traga-o aqui.

_ Mas, Senhor, ele parece que é ateu.

_ Não, Pedro, não é. Não só os médicos, mas muitos profissionais, de todas as áreas, têm essa dúvida. E, quanto ao que lhe parece, o culpado sou eu. Sempre que estive com ele, preferi ficar incógnito.

_ Mas, Senhor...

_ Pedro, você sabe que as criaturas me pedem que interceda, mormente, quando estão desesperadas. Um avô que suplica pela vida do neto, uma mãe que implora por um filho... Aí, Pedro, Eu não posso entrar num hospital dizendo que vou operar um paciente... Tenho os meus médicos escolhidos, até porque Eu não posso me incorporar em qualquer um, eis que a missão seja sempre impossível. Tem que ser um médico competente, se não ainda fica mais difícil explicar o milagre. Você sabe o significado da palavra entusiasmo, Pedro? Vem do grego: “ter Deus dentro de si’. São os anestesistas, boquiabertos, mas que também operam seus milagres, que saem a comentar o milagre, até porque os meus escolhidos acham tudo normal e, por isso, logo depois, se esquecem de tudo. Pedro, rápido, traga-o aqui.

Quando Pedro, retornando, se afastava do umbral celestial...

_ Pedro, ia me esquecendo. Traga o meu tabuleiro de xadrez. Vamos ver se, realmente, ele é um bom enxadrista...

Post Scriptum Independentemente de sua atividade laboral, fico atento às pessoas entusiasmadas, já que posso estar diante de uma manifestação divina. Esta crônica rola na minha cabeça há muitos anos e foi cristalizada no decorrer de novembro de 2013. Mesmo sendo uma obra de ficção, qualquer semelhança com a vida de milhares de médicos, vivos ou mortos, não será uma mera coincidência. É a homenagem que presto aos médicos. Não posso esquecer dos enfermeiros, que chegam junto com os espasmos lancinantes das madrugadas hospitalares, assim como de todo o complexo de profissionais que cuidam da nossa saúde. Decerto, haverá jardins celestiais para cada um deles, representando outros temas: quadras de peteca, tênis, vôlei, campos de futebol, fazendolas, pistas para  footings, entre outras práticas esportivas e hobbies. Dante Alighieri, ao escrever a primeira parte da ‘Divina Comédia’, criou um inferno, decerto, para os seus inimigos e aqui, humildemente, criei o céu, também individualizado, para cada um dos meus amigos.

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