Crônicas do Cotidiano

Talentos incompossíveis

João Carlos Lopes dos Santos.



Adianto-lhes que não é o meu caso. Recorrentemente, digo que o meu único talento é detectar talento onde há e em quem tem. Por mais que desconfiemos, todos têm ao menos um talento, mas é preciso desenvolvê-lo.

Em 2001, ao escrever a crônica ‘O que é talento?’, defini:

“Talento não se define, não se explica, testifica-se, detecta-se. Contudo, não podemos fugir dos ditames da teoria: talento é aptidão natural ou habilidade adquirida. Talento me sugere inteligência e cultura excepcionais”.

Quarentinha

Quarentinha (Waldir Cardoso Lebrêgo, Belém-PA, 15/9/1933 – Rio de Janeiro-RJ, 11/2/1996), futebolista ativo nos anos 1950/60, ao meu ver, é o mais injustiçado pela memória do futebol. Hoje, em 2017, poucos o conhecem. Por ser contemporâneo de Garrincha (Magé-RJ, 28/10/1933 – Rio de Janeiro-RJ, 20/1/1983), ambos nascidos em 1933 e tendo brilhado no Botafogo, os holofotes não se dividiram igualmente. Além do que, Quarentinha teve sorte madrasta. Nas Copas do Mundo de 1958 e 1962, conquistadas pelo Brasil, por contusão, por isso ou por aquilo, ficou de fora das duas convocações. Ademais, no auge de sua carreira, as transmissões de TV eram locais, em preto e branco, só alcançando pequenas distâncias, e com muito “chuvisco”. Fez parte do quinteto atacante botafoguense: Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagallo. Traduzindo para o “idioma” de 2017, sem guardar as características, posto que estamos a tratar de talentos personalíssimos: Cristiano Ronaldo, Luis Soárez, Robert Lewandowski, Lionel Messi e Neymar Júnior.

Ninguém me contou, vi o Quarentinha jogar pelo meu clube e pela ‘Seleção Canarinho’. Até os dias de hoje, é o maior artilheiro do meu Botafogo e possivelmente detenha o mais elevado índice, na relação de gols e partidas jogadas pela Seleção. Tinha muita intimidade com a bola. Se ele tivesse nascido 60 anos depois, estaria jogando em algum clube europeu de ponta.

Era filho de Luís Gonzaga Lebrêgo, o ‘Quarenta’, importante jogador do Paysandu de Belém do Pará nos anos 1920/30 e, depois, segundo me informou um dileto amigo e testemunha ocular, foi operário do departamento industrial da Base Naval de Val-de-Cães, na mesma Belém. Dele herdou a introversão, o chute forte e o apelido ‘Quarentinha’. O apelido do pai surgiu na escola. À época, o número escolar muitas vezes eclipsava o nome do aluno.

Quarentinha – ‘O canhão de General Severiano’ – não sorria e não comemorava os gols. Nas cobranças de faltas, com sua canhota fulminante, quem estava na barreira se encolhia e os goleiros rezavam para não ter que botar a mão na bola. Nas fotos dos jornais, a bola – então em gomos de couro marrom – saía ovalada tal qual a do futebol americano.

Mas, quais eram os talentos incompossíveis do Quarentinha? Unia, no chute, potência e precisão. Chamava a atenção a força e a exatidão na mira dos seus chutes de fora da grande área. Como se sabe, ou se chuta a bola colocada, sem força e com exatidão, ou se chuta com força, o que raramente lhe dá direção. Ele tinha o dom de colocar a bola onde queria, mesmo quando chutava com violência. Seu histórico de desperdício era desprezível. Para fora dos limites da baliza, decerto acontecia, mas não tenho memória disso.

Em Zico fala sobre o Botafogo, há o depoimento de um ilustre flamenguista. Veja qual foi o segundo jogador citado por ele em uma equipe fantástica.
Em Pelé visita a sede de General Severiano, há outro depoimento de quem conviveu muitas vezes com ele dentro do campo. Quem citou em primeiro lugar? Aconselho que façam uma pesquisa, incluindo a leitura que, de propósito, deixei para ler depois, para escrever aqui somente aquilo que trago na memória. ‘Quarentinha: o Artilheiro que não Sorria’ (Rafael Casé, Editora Livros de Futebol, 2008). Você não vai entender por que atualmente quase ninguém fala dele.

Belchior

Antônio Carlos Belchior (Sobral-CE, 26/10/1946 – Santa Cruz do Sul-RS, 30/4/2017) também foi exemplo de quem tinha talentos incompossíveis. Poeta e músico com o mesmo grau de excelência, compunha sozinho suas letras e músicas. Além disso, as  interpretava com singular emoção.

Na sua extensa obra, jamais se aventou estar alguma composição eivada de plágio. A sua produção artística é a cara dele, de bigodão e tudo, esculpida em mármore de Carrara. É raro reunir, com absoluta qualidade, talentos de poeta, músico e intérprete numa mesma pessoa.

Entre seus sucessos, como ‘Paralelas’, ‘Apenas Um Rapaz Latino Americano’, ‘Como Nossos Pais’, ‘Medo de Avião’, ‘Coração Selvagem’, ‘Galos, Noites e Quintais’, para citar só alguns, destaco um sempre atual: ‘Na Hora do Almoço’ – https://letrasweb.com.br/belchior/na-hora-do-almoco.html –, a canção vencedora do Quarto Festival Universitário de Música Brasileira da TV Tupi, em 1971, a que deu início ao seu sucesso. Analise a profundidade dessa letra e, depois, volte a ler este texto. Também, aconselho uma pesquisa posterior sobre a riquíssima obra de Belchior. O Google é pródigo em informações. Você não vai entender o ostracismo que se abateu sobre seus últimos anos de vida.

A cozinheira

Poucas vezes, me deparo com pessoas que têm talentos incompossíveis. A competência alheia me causa admiração. Louvo as pessoas céleres e efetivas. Para ser justo, não posso deixar de relatar a atuação de uma cozinheira, aqui incógnita. Apareceu lá em casa, num sábado, como diarista, para preparar as comidas congeladas da semana, referenciada pelo belíssimo trabalho que faz para os seus efetivos patrões. Trata-se de uma família amiga, cuja matriarca e demais membros da família são muito queridos por nós daqui de casa.

Damos muita sorte com as pessoas que nos prestam serviços; isso já virou uma regra geral ao longo de tantos anos. No primeiro sábado que a cozinheira chegou, tomando meu café matinal na copa, observei que ela processava várias tarefas e com muita agilidade. Nota dez em limpeza, observei, mas o que me impressionou mesmo foi a celeridade que imprimia às sei lá quantas tarefas que estava a fazer ao mesmo tempo. A ilação foi inevitável: com essa correria em múltiplas tarefas, a comida não pode ficar boa...

E o tempero perfumava o ambiente e aguçava apetites... Quando a comida foi servida, foi como se caísse dos céus um maná. Ela tinha conseguido encontrar o ponto de equilíbrio do sal. A comida não estava insossa, tampouco salgada. Nos sábados seguintes, confirmei que, de fato, a cozinheira tinha talentos incompossíveis: celeridade e efetividade.

Pelo telefone, ao falar com a minha amiga, a chefe daquele clã, antes aqui mencionada, elogiei tão somente um talento da cozinheira: o seu tempero equilibrado no sal, o que já me tinha reduzido a pressão arterial. E, do outro lado da linha, a minha amiga perguntou:

_ Você viu, João, como ela é rápida?

Ah! Caro leitor, como é bom falar bem das pessoas ...

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